quinta-feira, abril 28, 2005

Homilia de Bento XVI na missa de inauguração do Pontificado

Senhores Cardeais,
Venerados irmãos no episcopado e no sacerdócio,
Distintas autoridades e membros do Corpo diplomático,
Queridos irmãos e irmãs:

Por três vezes, acompanhou-nos nestes dias tão intensos o canto das ladainhas dos Santos: durante os funerais de nosso Santo Padre João Paulo II; por ocasião da entrada dos Cardeais em conclave; e também hoje, quando as cantamos com a invocação: Tu illum adiuva - sustenta o novo sucessor de São Pedro. De cada uma das vezes, ouvi este canto orante de um modo muito particular, como uma grande consolação. Como nos sentimos abandonados após a partida de João Paulo II!
O Papa que durante 26 anos foi o nosso pastor e guia no caminho através destes tempos. Ele cruzou o limiar para a outra vida - entrando no mistério de Deus. Mas não deu este passo sozinho. Quem crê, nunca está só; não o está na vida nem na morte. Naquele momento tivemos ocasião de invocar os Santos de todos os séculos, os seus amigos, os seus irmãos na fé, sabendo que seriam o cortejo vivo que o acompanharia no além, até à glória de Deus. Nós sabíamos que lá se esperava a sua chegada. Agora sabemos que ele está entre os seus e se encontra realmente em sua casa.
Fomos novamente consolados cumprindo a solene entrada no conclave para eleger aquele que Deus havia escolhido. Como poderíamos reconhecer o seu nome? Como poderiam 115 Bispos, procedentes de todas as culturas e países, encontrar aquele a quem Deus queria outorgar a missão de ligar e desligar? Uma vez mais sabíamo-lo: sabíamos que não estávamos sós, que estávamos rodeados, conduzidos e guiados pelos amigos de Deus.
E agora, neste momento, eu, débil servidor de Deus, devo assumir esta tarefa inaudita, que supera realmente qualquer capacidade humana. Como poderei fazê-lo? Como serei capaz de levá-la a cabo? Todos vós, queridos amigos, acabais de invocar toda a multidão de Santos, representada por alguns dos grandes nomes da história de Deus com os homens. Deste modo, também em mim se reaviva esta consciência: não estou só. Não tenho de levar eu só o que, na realidade, nunca poderia suportar sozinho. A multidão dos Santos de Deus protege-me, sustenta-me e conduz-me. E a vossa oração, caros amigos, a vossa indulgência, o vosso amor, a vossa fé e a vossa esperança acompanham-me.
Com efeito, à comunidade dos Santos não pertencem só as grandes figuras que nos precederam e de quem conhecemos os nomes. Todos nós somos a comunidade dos Santos; nós, os baptizados no nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; nós, os que vivemos do dom da carne e do sangue de Cristo, por meio do qual quer transformar-nos e fazer-nos semelhantes a si mesmo.
Sim, a Igreja está viva - esta é a maravilhosa experiência destes dias. Precisamente nos tristes dias da doença e da morte do Papa, isto manifestou-se de modo maravilhoso aos nossos olhos: que a Igreja está viva. E a Igreja é jovem. Ela leva em si o futuro do mundo e, por isso, indica também a cada um de nós o caminho para o futuro. A Igreja está viva e nós vemo-la: experimentamos a alegria que o Ressuscitado prometeu aos seus. A Igreja está viva - está viva porque Cristo está vivo, porque Ele ressuscitou verdadeiramente.
Na dor que se mostrava no rosto do Santo Padre nos dias da Páscoa, contemplámos o mistério da paixão de Cristo e tocámos ao mesmo tempo as suas feridas. Mas em todos estes dias também pudemos, num sentido profundo, tocar o Ressuscitado. Foi-nos dado experimentar a alegria que ele prometeu, depois de um breve tempo de escuridão, como fruto da sua ressurreição.

A Igreja está viva: deste modo saúdo com grande alegria e gratidão todos vós que estais aqui reunidos, veneráveis irmãos cardeais e bispos, queridos sacerdotes, diáconos, agentes pastorais e catequistas. Saúdo-vos, religiosos e religiosas, testemunhas da presença transfigurante de Deus. Saúdo-vos, fiéis leigos, imersos no grande campo da construção do Reino de Deus que se expande no mundo, em todas as expressões de vida. O discurso enche-se de afecto também na saudação que dirijo a todos os que, renascidos no sacramento do Baptismo, ainda não estão em plena comunhão connosco; e a vós, irmãos do povo hebraico, a que estamos estreitamente unidos por um grande património espiritual comum, que afunda as suas raízes nas irrevogáveis promessas de Deus. O meu pensamento, enfim - quase como uma onda que se expande – dirige-se a todos os homens de nosso tempo, crentes e não crentes.

Queridos amigos! Neste momento não tenho necessidade de apresentar um programa de governo. Alguns traços do que considero ser a minha tarefa, pude expô-los já na minha mensagem da quarta-feira, 20 de Abril; não faltarão outras ocasiões para fazê-lo.
O meu verdadeiro programa de governo é o de não fazer a minha vontade, não seguir as minhas próprias ideias, mas colocar-me, junto com toda a Igreja, à escuta da palavra e da vontade do Senhor e deixar-me conduzir por Ele, de tal modo que seja Ele mesmo a guiar a Igreja nesta hora da nossa história. Em vez de expor um programa, desejaria simplesmente procurar comentar os dois sinais com os quais se representa liturgicamente o início do Ministério Petrino; ambos os sinais reflectem também exactamente aquilo que é proclamado nas leituras de hoje.

O primeiro sinal é o Pálio, tecido em lã pura, que me foi colocado sobre os ombros. Este sinal antiquíssimo, que os Bispos de Roma trazem desde o século IV, pode ser considerado como uma imagem do jugo de Cristo, que o Bispo desta cidade, o servo dos servos de Deus, toma sobre os seus ombros. O jugo de Deus é a vontade de Deus que nós acolhemos. E esta vontade não é para nós um peso exterior, que nos oprime e nos priva da liberdade. Conhecer o que Deus quer, conhecer qual é o caminho da vida – esta era a alegria de Israel, era o seu grande privilégio. Esta é também a nossa alegria: a vontade de Deus, não nos aliena, purifica-nos - talvez às vezes de um modo doloroso - e assim, conduz-nos a nós mesmos. Desse modo, não o servimos somente a Ele, mas também à salvação de todo o mundo, de toda a história.
Na realidade, o simbolismo do Pálio é mais concreto ainda: a lã de cordeiro quer representar a ovelha perdida, ou ainda a que está doente ou débil, que o pastor põe aos ombros para a conduzir às águas da vida. A parábola da ovelha perdida, que o pastor procura no deserto, foi para os Padres da Igreja uma imagem do mistério de Cristo e da Igreja.
A humanidade - todos nós - é a ovelha desgarrada no deserto que não consegue encontrar a estrada. O Filho de Deus não tolera isto; Ele não pode abandonar a humanidade em semelhante situação miserável. Põe-se em pé, abandona a glória do céu, para ir em busca da ovelha, seguindo-a até à cruz. Coloca-a sobre os seus ombros, carrega a nossa humanidade, leva-nos a nós mesmos, pois Ele é o bom pastor, que oferece a sua vida pelas ovelhas.
O Pálio indica, em primeiro lugar, que todos nós somos levados por Cristo. Mas, ao mesmo tempo, convida-nos a levar-mo-nos uns aos outros. Assim, o Palio, torna-se no símbolo da missão do pastor de que falam a segunda leitura e o Evangelho.
A santa inquietude de Cristo deve animar o pastor: não é indiferente para ele que tantas pessoas vivam no deserto. E há muitas formas de deserto: o deserto da pobreza, o deserto da fome e da sede; o deserto do abandono, da solidão, do amor destruído. Existe também o deserto da escuridão de Deus, do vazio das almas que já não têm consciência da dignidade e do rumo do homem. Os desertos exteriores multiplicam-se no mundo, porque os desertos interiores se tornaram muito grandes. Por isso, os tesouros da terra já não estão ao serviço do cultivo do jardim de Deus, no qual todos podem viver, mas estão subjugados ao poder da exploração e da destruição.
A Igreja nos seu conjunto e os seus Pastores, tal como Cristo, devem pôr-se ao caminho para conduzir os homens para fora do deserto em direcção ao lugar da vida, para a amizade com o Filho de Deus, para Aquele que nos dá a vida, e a vida em plenitude.
O símbolo do cordeiro tem ainda outro aspecto. Era costume no antigo Oriente que os reis se designassem a si mesmos como pastores do seu povo. Esta era uma imagem do seu poder, uma imagem cínica: para eles, os povos eram como ovelhas das quais o pastor podia dispor a seu bel-prazer. Pelo contrário, o pastor de todos os homens, o Deus vivo, fez-se ele mesmo cordeiro, pôs-se do lado dos cordeiros, dos que são pisados e sacrificados. É exactamente assim que Ele se revela como o verdadeiro pastor: “Eu sou o bom pastor [...]. Eu dou a minha vida pelas ovelhas”, diz Jesus de si mesmo (Jo 10,14ss).
Não é o poder o que redime, mas o amor! Este é o sinal de Deus: Ele mesmo é amor. Quantas vezes desejaríamos que Deus se mostrasse mais forte! Que Ele castigasse duramente, que abatesse o mal e que criasse um mundo melhor! Todas as ideologias do poder justificam-se desta forma, justificam a destruição do que se opõe ao progresso e à libertação da humanidade. Nós sofremos pela paciência de Deus. E, não obstante, todos necessitamos da sua paciência. O Deus, que se fez cordeiro, diz-nos que o mundo se salva pelo Crucificado e não pelos crucificadores. O mundo é redimido pela paciência de Deus e destruído pela impaciência dos homens.

Uma das características fundamentais do pastor deve ser amar os homens que lhe foram confiados, tal como ama Cristo, ao serviço de Quem está. “Apascenta as minhas ovelhas”, diz Cristo a Pedro, e a mim, neste momento. Apascentar quer dizer amar, e amar quer dizer também estar dispostos a sofrer. Amar significa dar às ovelhas o verdadeiro bem, o alimento da verdade de Deus, da palavra de Deus, o alimento da sua presença, que Ele nos dá no Santíssimo Sacramento. Queridos amigos - neste momento só posso dizer: rezai por mim, para que aprenda a amar cada vez mais o Senhor. Rezai por mim, para que aprenda a amar cada vez mais o seu rebanho - a vós, a Santa Igreja, a cada um de vós e a vós todos juntos. Rezai por mim, para que não fuja, por medo, diante dos lobos. Rezemos uns pelos outros para que o Senhor nos leve e nós aprendamos a levar-nos uns aos outros.

O segundo sinal com o qual a liturgia de hoje representa o começo do Ministério Petrino é a entrega do Anel do Pescador. O chamamento de Pedro a ser pastor, que ouvimos no Evangelho, segue-se à narração de uma pesca abundante: depois de uma noite em que lançaram as redes sem êxito, os discípulos viram na margem o Senhor Ressuscitado. Ele manda-os voltar a pescar, mais uma vez, e eis que a rede se enche tanto que não tinham forças para puxá-la; 153 peixes grandes e, “ainda que fossem tantos, não se rompeu a rede” (Jo 21,11). Este relato no final do caminho terreno de Jesus com os seus discípulos corresponde a um relato no início: também nessa altura, os discípulos não tinham pescado nada durante toda a noite; também então Jesus tinha convidado Simão a fazer-se ao largo mais uma vez. E Simão, que ainda não se chamava Pedro, deu aquela admirável resposta: “Mestre, à Tua palavra lançarei as redes”. Foi-lhe confiada então a missão: “Não temas! Doravante serás pescador de homens” (Lc 5,1-11).
Também hoje se diz à Igreja e aos sucessores dos Apóstolos que se façam ao largo no mar da história e que lancem as redes, para conquistar os homens para o Evangelho - para Deus, para Cristo, para a vida verdadeira. Os Padres dedicaram também um comentário muito particular a esta tarefa singular. Dizem assim: para o peixe, criado para viver na água, é mortal ser tirado do mar. É privado de seu elemento vital para servir de alimento ao homem.
Na missão do pescador de homens, porém, ocorre o contrário. Nós homens vivemos alienados, nas águas salgadas do sofrimento e da morte, num mar de escuridão sem luz. A rede do Evangelho tira-nos das águas da morte e leva-nos ao esplendor da luz de Deus, na vida verdadeira. Assim é, efectivamente - na missão de pescador de homens, seguindo a Cristo, é necessário tirar os homens do mar salgado de todas as alienações e levá-los à terra da vida, à luz de Deus. É mesmo assim: nós existimos para mostrar Deus aos homens. E só onde se vê Deus, começa verdadeiramente a vida. Só quando encontramos em Cristo o Deus vivo, conhecemos o que é a vida.
Não somos o produto casual e sem sentido da evolução. Cada um de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um é amado, cada um é necessário. Nada há de mais maravilhoso que termos sido alcançados, surpreendidos, pelo Evangelho, por Cristo. Nada mais belo que conhecê-lo e comunicar aos outros a amizade com Ele.
A tarefa do pastor, do pescador de homens, pode parecer às vezes cansativa. Mas é bela e grande, porque, em definitivo, é um serviço à alegria, à alegria de Deus que quer fazer a sua entrada no mundo.

Quero agora destacar ainda uma coisa: tanto da imagem do pastor como da do pescador, emerge de maneira muito explícita o apelo à unidade. “Tenho, também, outras ovelhas que não são deste redil; também estas devo conduzir, e escutarão a minha voz e haverá um só rebanho e um só Pastor” (Jo 10,16), diz Jesus no final do discurso do bom pastor. E o relato dos 153 peixes termina com a alegre constatação: “E ainda que fossem tantos, não se rompeu a rede” (João 21,11).
Ai de mim, Senhor amado! Agora a rede rompeu-se, queremos dizer contristados. Mas não - não devemos estar tristes! Alegremo-nos pela tua promessa que não desilude e façamos tudo o que for possível para percorrer o caminho rumo à unidade que tu prometeste. Façamos memória dela na oração ao Senhor, como mendigos; sim, Senhor, lembra-te do que prometeste. Faz que sejamos um só pastor e um só rebanho! Não permitas que se rompa a tua rede e ajuda-nos a ser servidores da unidade!

Neste momento a minha recordação volta ao dia 22 de Outubro de 1978, quando o Papa João Paulo II iniciou o seu ministério, aqui, na Praça de São Pedro. Ainda, e continuamente, ressoam nos meus ouvidos as suas palavras de então: “Não tenhais medos! Abri, antes, escancarai as portas a Cristo!”.
O Papa falava aos fortes, aos poderosos do mundo, os quais tinham medo que Cristo Lhes pudesse retirar algo do seu poder, se o deixassem entrar e se concedessem liberdade à fé. Sim, ele certamente lhes teria retirado algo: o domínio da corrupção, da distorção do direito e da arbitrariedade, mas não lhes teria tirado nada de quanto pertence à liberdade do homem, à sua dignidade, à edificação de uma sociedade justa.
O Papa falava também a todos os homens, sobretudo aos jovens. Acaso não temos todos, de algum modo, medo - se deixamos entrar Cristo totalmente dentro de nós, se nos abrimos totalmente a ele -, medo de que Ele possa trazer algo para a nossa vida? Acaso não temos todos medo de renunciar a algo grande, único, que faz a vida mais bela? Não nos arriscamos a encontrarmo-nos na angústia e privados da liberdade? E mais uma vez o Papa queria dizer: não! Quem deixa entrar Cristo não perde nada, nada - absolutamente nada - do que torna a vida livre, bela e grande.
Não! Só nesta amizade se escancaram as portas da vida. Só nesta amizade se abrem realmente as grandes potencialidades da condição humana. Só nesta amizade experimentamos o que é belo e o que nos liberta.
Assim, hoje, eu quero, com grande força e grande convicção, a partir da experiência de uma longa vida pessoal, dizer-vos, queridos jovens: Não tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, concede tudo. Quem se dá a ele, recebe cem por um.
Sim, abri, escancarai as portas a Cristo - e encontrareis a verdadeira vida.
Amen.


Praça de S. Pedro, Domingo, 24 de Abril de 2005

Secretariado Diocesano de Pastoral Juvenil de Viana do Castelo, Cúria Diocesana. Convento de São Domingos. 4900-864 Viana do Castelo Telef.258-824567 Fax.258-824459 Email: jotas@tugamail.com